Por que a insônia aumenta o risco de depressão no futuro e vice-versa
Lúcia HelenaColunista de VivaBem05/06/2024 04h08
Pessoas com depressão tendem a perder o sono, remoendo pensamentos cinzentos. Daí que a insônia sempre foi considerada uma consequência indireta — ou sintoma secundário, como se diz no jargão médico — do estado de tristeza profunda que acomete quem tem esse transtorno.
De uns tempos para cá, porém, tornou-se cada vez mais nítida a ideia de que não seria só isso: por outro lado, a insônia também aumenta a probabilidade de alguém desenvolver uma doença psiquiátrica, em especial a depressão.
Para dar só um exemplo, uma análise comparando os resultados de 34 estudos robustos, envolvendo um total de mais de 150 mil indivíduos, concluiu que o insone chega a ter o dobro de risco de, amanhã ou depois, ser diagnosticado com um transtorno maior depressivo. Mas por que razão?
Foi isso — a insônia poder ser, ela própria, fator de risco para a depressão — que despertou na geneticista Mariana Moysés Oliveira e em seus colegas do Instituto do Sono da AFIP (Associação Fundo de Incentivo à Pesquisaa curiosidade de fuçar os genes de um grupo de 1.042 moradores de São Paulo, representativos da população da maior cidade da América Latina. Afinal, nosso DNA poderia guardar boas explicações sobre o que um problema teria a ver com o outro.
As conclusões dessa empreitada científica inédita foram apresentadas ontem (dia 4), em Houston, nos Estados Unidos, durante o SLEEP 2024, o grande congresso americano sobre sono. "O que a nossa pesquisa mostra é que depressão e insônia estão irremediavelmente ligadas na sua origem genética", diz a cientista. "Uma não é consequência da outra. São duas doenças que andam juntas, dois aspectos de uma mesma condição."
Ao olhar para determinadas variantes nos genes que aumentam a predisposição para a insônia e, depois, para as variantes genéticas que elevam o risco de depressão, o que a doutora Mariana notou foi uma baita sobreposição. "Muitos fatores genéticos são compartilhados entre elas", justifica a geneticista, que voltou para o Brasil há dois anos para ser pesquisadora na AFIP, depois de fazer parte do doutorado na Universidade de Lausanne, na Suíça, e pós-doutorado em Harvard.
A cientista sempre investigou como pequenas variações nos nossos genes são capazes de aumentar a propensão a doenças comuns. Mas foi no regresso ao país que começou a aplicar seus conhecimentos em genética humana em estudos sobre o sono."Quem tem risco genético elevado para a depressão também tem risco genético elevado para a insônia", reforça, convencida disso. "O que indica que, provavelmente, cuidando de um desses problemas você pode prevenir o outro", complementa.
Pequenas variações
Os pesquisadores do Instituto do Sono da AFIP usaram como ponto de partida dados de pessoas entre 20 e 80 anos que, em 2007, fizeram parte de uma das edições do EPISONO (Estudo Epidemiológico do Sono de São Paulo). Não à toa. Mais do que terem passado por avaliações e terem respondido questionários para rastrear, principalmente, distúrbios do sono e manifestações neuropsiquiátricas, todas elas fizeram diversos exames de sangue e testes genéticos. "Com isso, no final, temos acesso a mais de 1 mil características de cada um dos 1.042 participantes", conta a doutora Mariana.
Para que ela e seus colegas examinassem os genes, o DNA foi extraído das amostras de sangue. Assim, os pesquisadores fizeram o que chamam de varredura genômica. Digamos que é um jeito de olhar para o canto certo, onde seria mais provável que achassem pequeníssimas variações. Era nelas, afinal, que deveriam ficar atentos.
Ora, o genoma de todas as pessoas no mundo é majoritariamente igual. São essas variações, mínimas, que criam as diferenças entre nós — de características físicas a risco maior ou menor de doenças, por exemplo.
"A varredura genômica, no caso, é uma metodologia que lança mão de formas de avaliar apenas as regiões do DNA que costumam apresentar essas pequenas diferenças de um ser humano para outro", explica a geneticista. Ou seja, se o genoma é comparável ao "livro da vida", a varredura genômica vai direto aos trechos que prometem ser mais interessantes, com as respostas de que a ciência precisa.
A questão é que, embora os cientistas dominem a língua com a qual as informações estão escritas — fazendo mais uma comparação —, o texto é confuso e cheio de enigmas. "No nosso estudo, encontramos cerca de 1 milhão de variações por pessoa. É um conjunto imenso de dados! Mas, se somos muito bons na leitura, ainda somos muito ruins na hora de interpretar tudo isso", reconhece a doutora Mariana.
Para predizer o risco
Há técnicas de bioinformática e outras que vêm sendo empregadas para driblar essa dificuldade. No caso, os cientistas brasileiros usaram uma delas, conhecida por escore poligênico.
Baseando-se no que se sabe sobre as variações genéticas mais frequentes quando há determinadas doenças, o modelo matemático se debruçou sobre todas aquelas que foram encontradas nas amostras de moradores de São Paulo para estabelecer o risco, se mais alto ou mais baixo de insônia e depressão, no caso.
"Quanto maior o risco genético para queixas de sono, aumentava o risco genético para sintomas depressivos. A correlação se mostrou fortíssima", afirma a doutora Mariana. E, claro, isso se refletia nos outros exames e avaliações que os participantes tinham feito no passado, mostrando que o que os genes contavam realmente fazia sentido. Repare, isso não é mero detalhe.
Nossa gente, nossos genes
"A frequência das variantes genéticas muda de uma população para outra. Talvez, o conjunto delas associado com o risco elevado de insônia na Coreia não seja exatamente igual ao das pessoas nascidas na Croácia", exemplifica a doutora Mariana.
Essa, diga-se, é sempre uma tremenda dúvida: será que o que a ciência sabe até o momento sobre variantes genéticas e risco de adoecimento serve, de fato, para a nossa população? A indagação é válida porque esse conhecimento se baseia nos GWAS — sigla do inglês para estudo de associação de larga escala. São investigações extremamente parrudas, que escrutinam o DNA de, pelo menos, meio milhão de pessoas para apontar as variantes envolvidas com o risco de doenças comuns. Mas aí é que está: a maioria esmagadora dos participantes é de europeus brancos.
"É importantíssimo saber as variantes por trás do risco de insônia e depressão na nossa população, que tem uma genética muito diversa e peculiar. Aliás, acredito que, talvez, possamos extrapolar o que encontramos no nosso estudo para a população latina", pensa a doutora Mariana. "Isso poderá levar ao desenvolvimento de ferramentas para a gente descobrir, na população, quem tem maior probabilidade de apresentar insônia e depressão e, dessa maneira, agir de maneira preventiva".
Em outras palavras, o trabalho apresentado ontem abre caminho para testes sob medida para a genética da nossa gente, possibilitando uma Medicina personalizada ou de precisão, capaz de acertar em cheio na prevenção de noites em claro e quadros depressivos graves. "Isso ainda é distante da nossa realidade, mas todo cientista olha para o futuro", comenta a doutora Mariana. Até lá...
O que você pode fazer
Preservar a qualidade do sono é fundamental para a saúde do corpo e da mente. Até aí, nenhuma novidade. Mas, agora, tenha uma clareza ainda maior de que isso ajuda a afastar um quadro depressivo.
"Tanto a depressão quanto a insônia não são condições puramente genéticas. São resultado da combinação dos genes com o ambiente", lembra a geneticista. Em relação ao genoma, você não pode fazer nada: nasceu com ele e continuará com ele pelo resto da vida, carregando ou não um risco maior para essas duas condições. No entanto, poderá ser disciplinado ao ir para cama, afastar-se de telas, evitar refeições pesadas à noite, enfim, cumprir todo o ritual de uma boa higiene do sono E, a propósito, vale tentar acordar e fazer as refeições diurnas no mesmo horário para ajustar o relógio biológico.
Como a doutora Mariana gosta de frisar: risco genético elevado não é destino. Especialmente se a gente sabe que ele existe e se cuida ainda mais.
Reportagem
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